segunda-feira, 15 de abril de 2013




                                    Familia x Adoção

Falar sobre "família como foco de intervenção" exige não somente aprofundar a discussão sobre o que é uma família e como esta pode servir ou não como recurso em programas de intervenção, mas exige também a problematização de um elemento básico do processo de intervenção: a comunicação entre agentes de intervenção e a população alvo. Assim, neste trabalho, proponho sugerir, num primeiro momento, algumas pistas analíticas que podem nos ajudar a perceber dinâmicas familiares em grupos populares. Passo então a enfatizar a importância de uma teoria da prática, e as implicações metodológicas de uma análise centrada em "modos de vida". Finalmente, comento o olhar reflexivo -- um elemento fundamental do processo dialógico que permite a ESCUTA do "outro" em qualquer situação de intervenção. Será evidente, ao longo do texto, o quanto me inspirei no trabalho dos outros membros do painel, Ingrid Elsen e Jane Dytz, para travar esse diálogo entre a antropologia e as ciências da saúde[1].
1. Família X indivíduo
Elsen e Althoff (2004) colocam uma pergunta desafiadora para o trabalhador de saúde: qual a distinção entre as necessidades da família como coletividade e as necessidades dos indivíduos separados que compõem essa família. Paira a pergunta: será que não há elementos incompatíveis entre a saúde da família e a saúde dos membros individuais?
Sugiro, no entanto que, para responder essa pergunta, temos que primeiro saber como conceituar (até onde vai) "a família". Recorremos à reflexão de um antropólogo brasileiro, Luis Fernando Duarte (1994), para lançar a bola sobre esse assunto. Segundo ele, o valor "família" tem grande peso em todas as camadas da população brasileira. No entanto, significa coisas diferentes dependendo da categoria social. Enquanto, entre pessoas da elite, prevalece a família como linhagem (pessoas orgulhosas de seu patronímio) que mantêm entre elas um espírito corporativista, as camadas médias abraçam em espírito e em prática a família nuclear, identificada com a modernidade. Finalmente, aos grupos populares seria associada uma forma familiar ancorada nas atividades domésticas do dia-a-dia, e as redes de ajuda mútua.
Essa maneira de tentar associar certo modo de vida a determinada configuração familiar assume cor − agora num contexto diferente − na pesquisa da antropóloga norte-americana, Rayna Rapp (1992), na sua comparação de famílias brancas das camadas médias e famílias negras, principalmente pobres, dos Estados Unidos. Conforme essa pesquisadora, na ideologia altamente individualista das classes médias americanas, os parentes são assimilados à categoria de "amigos", de forma a poder eliminar os que não respeitam as regras da amizade. Dessa forma, os indivíduos com muitos problemas são afastados da convivência familiar, tal como uma perna gangrenada é cortada para manter a saúde do corpo. O filho perdulário é deserdado, o sobrinho doente é esquecido, a avó caduca é deixada numa instituição − tudo em nome do bom desenvolvimento e projeto de ascensão (isto é a "saúde") da família nuclear. A noção de família é reduzida à unidade linear − de pais para filhos − para evitar os riscos de dissipar recursos. Tudo é investido nos filhos, na sua educação, na sua carreira profissional.
As famílias negras e pobres que, por outro lado, vivem em condições de grande precariedade econômica, só conseguem sobreviver porque criam extensas redes de ajuda mútua. Não somente pais, mas também irmãos, tios, primos, ex-sogros, compadres e até amigos tornam-se membros pertinentes da rede familiar. Assim, não é incomum encontrar, na casa de uma mulher, além dela e dos filhos, uma diversidade de indivíduos: um primo, recém chegado do interior para procurar trabalho, dormindo no sofá, um pequeno sobrinho, cujos pais acabam de se separar, comendo na mesa da cozinha, etc... A dona de casa vai ajudar essas pessoas, por carinho, mas também porque sabe que em outra época, quando ela estava precisando de ajuda, eles − ou seus pais − ajudaram ela. A família aqui se estende horizontalmente, numa partilha constante, mesmo que nem sempre pacífica, de recursos.
Quando li essa descrição, não pude deixar de fazer uma aproximação entre as famílias negras norte-americanas descritas por Rapp e famílias em grupos populares brasileiros que eu encontrei durante minhas pesquisas de campo (Fonseca 2004). Lá também, os parcos recursos de qualquer núcleo familiar parecem ser constantemente drenados para pessoas necessitadas da família extensa. Lembro de Vanilda, uma amiga que ganha a vida como empregada doméstica, explicando por que nunca compra eletrodomésticos a vista, mesmo sabendo que a mercadoria seria muito mais barata assim. Não é, como poderia-se imaginar, que ela não sabe poupar dinheiro. Pelo contrário...
"Claudia", ela me explica, "Pense bem. Se eu tivesse dinheiro na poupança, como que ia resistir? Sempre tem, em algum lugar da família, um nené que está com pneumonia e precisa de remédio, ou um primo que se meteu em encrenca e vai ir preso se a gente não acha dinheiro para pagar o advogado. Sempre tem alguma coisa urgente acontecendo e, nesse caso, como que eu ia guardar o dinheiro para mim? Se eu não comprasse a máquina a prazo, aí sim, não ia nunca ter dinheiro para comprar!".
Quando Vanilda diz que sempre tem um nené na família que está doente, ela está falando de família no sentido mais amplo, que inclui um leque quase infindável de primos, ex-cunhadas, sobrinhos, primos e assim adiante. Além de criar suas cinco filhas praticamente sozinha, pois enviuvou muito cedo, ela também já abrigou na sua casa uma longa lista de parentes. Apesar de reconhecer que tal generosidade limita sua capacidade de investir no futuro de suas próprias filhas (isto é, em escolas particulares ou cursos profissionalizantes para elas), mal consegue imaginar outra maneira de agir. Seu lema é explicitado no provérbio que ela mesma cita: "Onde come um Português, come dois três" − uma noção que parece muito próxima à filosofia das famílias descritas por Rapp. Mas Vanilda também reconhece que, quando ela esteve "na pior" − viúva, bóia-fria e analfabeta, com menos de 30 anos e quatro crianças para criar − quem ajudou ela no início eram muitas dessas pessoas a quem, hoje, ela retribui o favor.
Sua história sublinha o ponto que quero fazer aqui. Quando falamos de um possível desencontro entre a saúde individual e a saúde da família, de que família estamos falando? As camadas médias, pensando no bem do pequeno núcleo pai-filhos, tenderiam a cortar os elementos estranhos e potencialmente perturbadores. Reduzindo "a família" ao número mínimo de indivíduos, há muito mais chance de fazer coincidir "a saúde da família" com a "saúde dos indivíduos". Nas famílias pobres, por outro lado, parece que certas pessoas acabam sacrificando seus projetos individuais ou os de seu núcleo familiar para salvar indivíduos problemáticos da rede extensa de parentes. Assim, a relação indivíduo-família não pode ser pensada da mesma forma em todo lugar, pois a própria noção de família varia conforme a categoria social com qual estamos lidando.
2. Elementos analíticos para pensar a família: além da unidade doméstica
Qual é o arsenal teórico que pode nos ajudar a dar conta dessa variedade de noções de família? Talvez devamos começar fazendo uma distinção entre "família" e "unidade doméstica". Os censos do IBGE trabalham em geral com a unidade doméstica e, portanto, definem vida familiar a partir da moradia. Trata-se de uma visão limitada, no entanto, que não leva em consideração justamente a parte mais dinâmica das relações familiares − e que em geral extrapola em muito "a casa".
Muitos dos moradores de bairros pobres pensam não em termos de "casa", mas, sim, em termos de "pátio". Parece que num terreno, por pequeno que seja, sempre tem lugar para construir mais uma "puxada" − isto é uma peça ou uma meia-água para receber um amigo ou parente. A primeira moradia da maioria de jovens casais é uma peça construída no quintal dos pais ou sogros. Com filhos casando e descasando, pessoas mudando atrás de um novo emprego, ou simplesmente a incorporação de algum inquilino, a composição do pátio muda... Mas, seja qual for a relação formal, é comum que haja uma troca intensiva entre essas "casinhas" para a realização de tarefas domésticas. Quando uma mulher trabalha fora, por exemplo, as outras do pátio tendem a suprir sua parte na organização doméstica − fornecendo almoço quente para os sobrinhos, e supervisionando as brincadeiras dos filhos pequenos. A parte mais visível desse processo é o cuidar de crianças − o que leva a uma intensa "circulação de crianças", e a situação não tão incomum de um indivíduo ser criado por (o que ele próprio considera suas) duas ou três "mães" (ver Fonseca, 2002). Mas é também possível encontrar diversos núcleos familiares repartindo comida. Até os mais pobres, os que não têm geladeira, são capazes de chamar os outros moradores do pátio ou do beco para comerem juntos quando recebem a doação de uma carne ou outra comida que estraga (Jardim, 1998).
Nesses casos, é difícil definir exatamente quais são os limites da própria unidade doméstica.
Em suma, para qualquer intervenção (especialmente em grupos populares), seria fundamental verificar como as atividades do dia -a-dia envolvem uma rede que se estende no espaço para outras casas e até mesmo para outros bairros. Traçando as linhas de ajuda mútua, podemos melhor refletir sobre o que é, nessa instância, a "família" pertinente.
3. A dimensão temporal da família
Vimos que a rede familiar, aquela unidade relevante para qualquer trabalho de intervenção, se estende no espaço além das quatro paredes de uma casa. Seria importante agora lembrar que as relações familiares, sendo relativamente duradouras, seguem uma lógica que se estende no tempo através de diversas gerações e através de muitos anos. Isto é, as diferentes etapas de uma troca "mútua" nem sempre ocorrem no imediato. Por exemplo, um observador desavisado poderia considerar que aquela avó que assimilou no seu núcleo doméstico e arcou com as despesas dos primeiros netos está numa relação de mão-única, em que ela ajuda seu filho e neto sem receber nada em troca. No entanto, devemos lembrar que esta avó está marcando seu lugar na rede familiar, reforçando através de seu dom a obrigação que seus descendentes têm de cuidar dela anos mais tarde na velhice − justamente quando ela passa a ocupar o lado mais fraco da relação familiar. Não se trata de um cálculo consciente, nem de um investimento garantido, que sempre dê retorno. Entretanto, a lógica da rede extensa de família − a lógica do dom, como nos ensina Marcel Mauss (1974) − implica numa reciprocidade a longo prazo − uma reciprocidade que, contrariamente à lógica do contrato ou até mesmo de amizades fugazes, coloca uma fé difusa em um retorno eventual, em alguma data futura, por algum membro da rede implicada na dádiva original.
A idéia de "ciclo de vida" é subsidiária a essa discussão sobre a dimensão temporal das relações familiares. Antropólogos clássicos (ver Fortes, 1958) definiram três fases do que consideravam um universal núcleo familiar: formação inicial (em geral, por casamento), expansão (com nascimento dos filhos), e declínio (quando os filhos adultos saem para estabelecer seus próprios núcleos, e a velha geração é deixada com "o ninho vazio"). Nas últimas décadas, pesquisadores confirmaram que a trajetória de qualquer família é bem mais complicada do que isso (ver Bilac, 1978; Barros, 1987). Sabemos, por exemplo, que, especialmente em grupos populares, as etapas do ciclo doméstico não são nítidas. Muitas vezes o nascimento de netos precede o casamento dos seus pais ou a formação de um novo núcleo. Ainda mais, nessa época de desemprego, há uma tendência crescente em todas as classes para filhos adultos voltarem para a casa dos pais em momentos difíceis, seguindo um divórcio ou perda de emprego (ver Peixoto, 2004). Assim, hoje em dia, o ciclo familiar baseado na nuclearização das famílias não é nada evidente.
No entanto, mesmo que não exista um só padrão, é inegável que a maioria de núcleos domésticos "evoluem" com o tempo. Pais de 16 anos não têm as mesmas opções, não se comportam da mesma forma, não têm as mesmas expectativas que pais de 30 anos ou de 60 anos. Aqui, posso citar o exemplo de Dona Maria. Finda a adolescência, sem emprego ou companheiro fixo, ela não encontrava outra solução para o bem-estar de seus numerosos filhos, senão a colocação em diferentes famílias de criação. Dez anos mais tarde, ela se estabeleceu com um "homem trabalhador"[2] e, além de fazer uma nova família com ele, procurou trazer para seu convívio seus filhos mais velhos. O domingo que conheci Dona Maria, ela estava reunida no seu quintal com seis dos sete filhos (a maioria agora adulta), fazendo churrasco.
A trajetória de Dona Maria e seus filhos não é incomum. Se seu núcleo familiar fosse observado durante a primeira etapa de sua trajetória, apareceria uma dispersão aparentemente caótica dos membros. Seria o exemplo por excelência da "família desestruturada". Em outro momento, mais avançado, do ciclo doméstico, observamos Dona Maria confortavelmente instalada com seu companheiro em casa própria, fornecendo um lugar de encontro e ainda mais, uma âncora de identidade para os diferentes indivíduos de uma família ostensivamente "unida".
O profissional de saúde, realisticamente, tem apenas uma entrada para as famílias com as quais trabalha − uma entrada que comporta um lugar apenas (em geral, a casa) e um tempo (a atualidade). Entretanto, para interagir com os membros dessas famílias, que são envolvidos em relações que vão bem além do "aqui e agora", é necessário que fique atento às dinâmicas que extrapolam seu limitado campo de observação, acionando o arsenal teórico adequado.
Enfim, devemos lembrar que não há receita para definir os membros relevantes de uma rede familiar. Essa pode ou não incluir consangüíneos (ascendentes, descendentes, colaterais...), parentes por casamento (sogros, cunhados, com-cunhados, padrastos, enteados...), padrinhos e compadres (e não devemos esquecer que existem padrinhos em casa, de igreja, na família de santo, etc.), e simplesmente amigos que, depois de ter compartilhado uma experiência particularmente intensa, acabaram se sentindo membro da família...
Procurando uma definição operacional da vida familiar que dê conta desse vasto leque de possibilidades, preferimos falar de dinâmicas e relações familiares (antes do que de um modelo ou unidade familiar). Assim, definimos o laço familiar (antes do que o modelo familiar) como uma relação marcada pela identificação estreita e duradoura entre determinadas pessoas que reconhecem entre elas certos direitos e obrigações mútuos. Essa identificação pode ter origem em fatos alheios à vontade da pessoa (laços biológicos, territoriais), em alianças conscientes e desejadas (casamento, compadrio, adoção) ou em atividades realizadas em comum (compartilhar o cuidado de uma criança ou um ancião, por exemplo).
4. Repercussões metodológicas do recorte "modo de vida": a teoria da prática
Gostaria, agora, de adentrar uma outra faceta dessa discussão, inspirada no trabalho de Dytz (2004), sobre modo de vida − em particular, sobre as implicações metodológicas de uma abordagem centrada na questão de modo de vida.
Desde os anos 70, Pierre Bourdieu (1972), entre outros, nos previne contra abordagens analíticas focadas exclusivamente nos ideais − as representações normativas de uma sociedade. Na linha de investigação que ele inspirou, "a teoria da prática", pesquisadores insistem na relação dialética entre práticas e valores. Valores, nessa ótica, não seriam considerados como estanques, parados no tempo, nem algo externo que pudesse ser imposto em um grupo. Pelo contrário, valores seriam constantemente reconstruídos − modificados ou reatualizados, investidos de novo significado − através da prática de atores sociais agindo dentro de um contexto específico.
O problema é que muitas pesquisas são presas a uma visão jurídica da realidade. É como se bastasse constatar a lei, repertoriar as normas hegemônicas, e medir a realidade contra esse parâmetro. Seguindo esse enfoque "legalista", veríamos, no estudo da família, que certas pessoas se aproximam mais do ideal da família conjugal nuclear, e outras menos... e muito pouco além disso. É assim que, durante as primeiras gerações de estudo da família, os pobres eram vistos como "a massa amorfa" dos "sem-família"[3]. O modelo, antes de nos ajudar, agiria como camisa de força, nos impondo um tipo de viseira que impedisse uma melhor visão da realidade. Não veríamos, por exemplo, a atitude criativa dos atores − como alguns deles burlam ou brincam com a norma oficial, como criam normas alternativas... enfim, como, através de suas práticas cotidianas, estão constantemente renegociando e transformando valores.
Tal é a força da matriz jurídica em nossa socialização que, muitas vezes, é difícil para profissionais fazerem uma associação entre suas próprias práticas familiares e as teorias (da família). Chamada por um grupo de conselheiros tutelares a falar de "a família", confesso que fiquei perplexa quanto à questão de por onde começar. Queria a todo custo evitar soluções fáceis. Não queria apresentar modelos prontos − como se a realidade pudesse ser encaixada em algumas regras preestabelecidas. Só baixou a angústia quando me dei conta que a apresentação antropológica da família só faria sentido se começássemos a partir das famílias dos próprios conselheiros. Assim, pedi para eles sentarem em pequenos grupos e elaborar a árvore genealógica de algum voluntário entre eles.
O resultado, para mim, pelo menos, foi muito revelador. Em primeiro lugar, as pessoas descobriram que tinham muitas dúvidas sobre como definir a família. Já que o exercício era ligado ao seu desempenho enquanto conselheiros e a eventual necessidade de intervir em certas famílias de seus bairros, combinamos que deveriam incluir no esquema genealógico do voluntário todos os parentes que tivessem alguma relevância nas atividades do dia-a-dia ou nas cerimônias rituais de família (batismo, aniversário, formatura...). A partir disso, os conselheiros começaram a se dar conta que a realidade de suas famílias não cabia facilmente naqueles diagramas lineares. Lembro do caso de Seu Adão, um senhor com seus 50 anos que confessou timidamente que, conforme sua carteira de identidade, tinha pai, mas era de "mãe desconhecida". Como podia ser? Sua mãe tinha tido três companheiros − o primeiro com o qual casou legalmente, o segundo com o qual geriu Seu Adão, e o terceiro com quem viveu trinta anos. Foi esse terceiro que registrou Seu Adão como se fosse filho nato, mas na hora do registro, resolveram omitir o nome da mãe porque ela ainda era casada e tinha medo que seu marido legal − e portanto pai oficial da criança − reclamasse seus direitos paternos. Para Seu Adão, esse terceiro companheiro de sua mãe − o pai que o criou − era seu verdadeiro pai, mas o diagrama que tentava esboçar no papel parecia colocar em relevo apenas os laços de sangue e uniões oficiais.
Jailton, objeto voluntário de estudo de outro grupo, queria saber se incluía ou não no seu diagrama sua ex-esposa e o novo marido dela. Acontece que ele mesmo tinha se juntado três vezes, estando no momento numa fase solteira. Vivia, no entanto, no pátio de sua mãe, "a seis metros" da casa de sua segunda mulher. Esta era a mãe de seu único filho e continuou a dividir com a mãe de Jailton, os cuidados cotidianos da criança. Esta avó jurava que ela só reconhecia uma nora − a mãe de seu neto − e, morando lado a lado no pátio, continuaram a tomar chimarrão juntas toda a tarde. De certa forma, que Jailton quisesse ou não, sua ex-esposa permanecia um membro relevante de sua família.
Aqui, não há tempo para repertoriar todos os riquíssimos resultados desse exercício com os conselheiros, cujas histórias, sem dúvida não são tão diferentes das de muitos outros agentes de intervenção. Para mim foi fascinante. Havia de tudo -- árvores genealógicas viradas de pernas para o ar que incluíam a empregada doméstica e a professora de colégio; clãs italianos com repetidos casamentos entre primos; pais relapsos confessos, que negavam o laço de parentesco e recusavam a pagar a pensão alimentícia do filho nascido de uma relação passageira (algo bastante surpreendente para um conselheiro tutelar, eleito para promover os direitos da criança... e assim por diante. Havia de tudo, de fato, menos a simples e reduzida família conjugal nuclear tão badalada como norma hegemônica. E o mais interessante: nenhum dos voluntários considerava que vinha de uma "família desestruturada". Assim, a partir da experiência deles, passamos a pensar como existiam − além do ideal normativo − outros arranjos, outras possíveis estruturas familiares que pudessem ordenar as práticas e dar sentido à existência. Insisto que foi na observação cuidadosa das práticas − e, nesse caso, de suas próprias práticas − que esses profissionais passaram a sair da camisa de forço dos modelos jurídicos, e pensar as dinâmicas sociais em toda sua criatividade.
5. A arte de escutar: um processo reflexivo
Quero insistir que não é por acaso que, para introduzir as pessoas numa abordagem da prática, pedimos para elas pensarem suas próprias práticas. Afinal, essa auto-reflexão − a maneira de virar a lente analítica para a própria cultura, os próprios valores do observador já é parte integrante das ciências sociais hoje (ver, por exemplo, Geertz 1999). Barrando essa política, é muito fácil incorrer no raciocínio evolucionista da época colonial em que o pesquisador se considerava representante do mundo civilizado e todos os outros −os bárbaros e selvagens − eram "outros" a serem convertidos, salvos, ou simplesmente desenvolvidos. Isto é, eram tudo menos pessoas a serem escutadas, parceiros de diálogo, A idéia hoje é que, para o dialogar acontecer, para romper a distância cientificista entre observador e observado, devemos saber examinar as obviedades de nossa própria cultura. Assim, nós também nos tornamos objetos de pesquisa (Velho, 1978).
Confesso que − até realizar o exercício didático com os conselheiros, eu − tal com eles, sempre tinha tido a convicção de vir de uma família absolutamente padrão. Citava minha família − norte-americana e nuclear − como protótipo da família nuclear moderna, tudo conforme a norma hegemônica. Entretanto, quando embarquei no exercício e comecei a diagramar meus parentes relevantes... me dei conta de certas esquisitices. Minha mãe enviuvou cedo com duas crianças pequenas. Ela, que até então tinha sido dona de casa, foi obrigada a iniciar num emprego assalariado, colocando em pouco tempo seus dois filhos a contribuir para a renda familiar, com bicos de babá e jornaleiro. De caráter um tanto difícil, ela logo rompeu com os parentes de seu falecido marido, nos cortando − eu e meu irmão − de qualquer contato com o lado paterno da família. Depois de eu sair de casa, com 16 anos de idade, ela casou novamente, mas o casamento acabou em pouco tempo quando minha mãe, para prosseguir sua carreira de professora, mudou de cidade. Ela, então com 60 anos, conheceu Bill, meu padrasto, com quem nunca casou, mas com quem vive até hoje, depois de 20 e tantos anos. Eu poderia ter adquirido uma irmã nessa nova união de minha mãe, já que Bill tem, de seu primeiro e único casamento, uma filha um pouco mais moça do que eu − só que nunca a encontrei, pois minha mãe se nega a recebê-la em sua casa. Em compensação, apesar de eu nunca ter morado com eles, esse senhor passou a me chamar filha, e eu o considero um membro sumamente querido de minha família − lhe devendo uma gratidão impagável pela maneira em que cuidou da minha mãe, nesses últimos anos em que ela degringolou mental e fisicamente.
Considerando os detalhes dessa minha história, dou-me conta de que minha família é qualquer coisa menos "padrão" − e os fatores convencionais do modelo familiar − biologia e casamento − não são nem de longe os mais importantes na definição das relações mais relevantes. Porém, mais importante: pergunto-me como − com essa trajetória − nunca me ocorreu que eu poderia ser proveniente de uma família "desestruturada". A chave desse enigma, evidentemente, se remete em parte ao caráter − difícil, mas disciplinado e ético − de minha mãe. Não quero de forma alguma negar a agency dessa personagem. (Ela, inclusive, nos ensinou muito cedo a descartar qualquer etiqueta negativa que outros pudessem atribuir a nós − a, por exemplo, de "semi-órfãos") Mas creio que há outro motivo por minha rejeição de qualquer conotação de "desestruturada" ligada a minha própria família. É que "desestruturada" é uma palavra usada para descrever a família dos outros. Não simplesmente "outros", mas ainda por cima, pobres. É como se − numa espécie de lógica post ipso facto, uma pessoa bem sucedida, por definição, não poderia vir de uma família desestruturada.
Passando por esse tipo de filtro classista, conseguimos usar − para ricos e para pobres − termos diferentes, carregados de avaliações opostas, para descrever comportamentos muito semelhantes:
Ricos “escolhem” sua família
Pobres “se submetem” à biologia
Maternidade assistida
Controle de natalidade
Produção independente
Mãe solteira
Família recomposta (divórcio e recasamento)
Família desestruturada
É para evitar esse tipo de dualismo, para rechaçar uma perspectiva moralista que pressupõe muito mais do que devia, que a antropologia insiste no elemento (auto-) REFLEXIVO do olhar analítico.
6. Modo de vida: carência ou criatividade ?
Essa reflexividade não significa, contudo, que façamos abstração das diferenças de oportunidade, das desigualdades econômicas e sociais, entre um sujeito social e outro. As circunstâncias sócioêconomicas − que são em grande medida alheias à vontade individual − são parte de qualquer modo de vida. É importante lembrar que as condições objetivas de vida levam as pessoas a olhar o mundo de um angulo ou de outro. É uma coisa ter um salário fixo e um convênio de saúde que permitem o familiar de um doente se organizar por telefone com médicos e hospitais, com hora marcada. É outra coisa levantar às cinco da madrugada (ou passar a noite na fila) para pegar uma ficha de exame médico, ou esperar meses por um leito hospitalar que não sai. Essas circunstâncias obrigam as pessoas a se organizarem de forma diferente, acentuando certas prioridades, atenuando outras.
Penso mais uma vez no caso de Vanilda que acabou por cuidar de sua mãe durante os últimos anos de vida, fazendo o milagre de sustentar uma família de seis (além dela, três de suas filhas e a mãe) com uma renda de dois salários mínimos. A "Mãe Velha" − como chamavam a avó nessa família − sofria de uma forma aguda de dementia senil. Ela não somente ficou dependente economicamente da filha, como passou a ter comportamentos agressivos e auto-destrutivos, com sérios distúrbios de sono. Ninguém na casa de três peças dormia mais -- nem Vanilda que trabalhava das 8 da manhã até 6 da tarde, nem as filhas dela que, quando não estavam no colégio, se revezavam nos cuidados da avó. Vanilda, vendo que ela não conseguia aliviar o sofrimento da mãe, tentou repetidas vezes interná-la − nem que fosse para "dar um descanso" para suas filhas (que, a essas alturas, não encontravam mais um cantinho sossegado onde estudar). Mas, como podem imaginar, só veio a resposta que não havia vaga na rede hospitalar e que era a responsabilidade da família cuidar de seus membros. Quando a Mãe Velha passou, no meio do inverno gaúcho (num frio de menos 6 graus), a arrancar a roupa e se tocar para a rua, completamente pelada, Vanilda não teve dúvida. Resolveu deixá-la amarrada à cama durante as horas quando o resto da família tentava dormir -- mesmo sabendo que essa tática poderia ser vista por observadores externos como prova de extrema crueldade.
A experiência de Vanilda sublinha um último aspecto fundamental da relação entre saúde familiar e modo de vida: a demanda apresentada por cada família aos serviços públicos de saúde, isto é, ao Estado, varia muito conforme suas condições concretas de vida. Eu, por exemplo, não tive que recorrer ao Estado para cuidar da minha velha mãe pois ela já tem aposentadoria e convênios de saúde suficiente para garantir condições dignas de vida − e sem sobrecarregar os familiares dela. Vanilda, por outro lado, não teve outra escolha a não ser aceitar o encargo de cuidar pessoalmente de sua mãe. Ao mesmo tempo, procurava desesperadamente algum apoio público para ampará-la − da mesma forma que muitos de seus vizinhos procuravam apoio de algum serviço público para ajudar no tratamento de um filho dependente químico ou outro membros problemático da família. Infelizmente, Vanilda, tal como a maioria de seus vizinhos, só conseguiu parcos resultados.
Ironicamente, alguns políticos chegam a sugerir que as insuficiências do serviço de saúde pública devem ser resolvidas não com mais investimento no setor, mas com políticas sociais que "fortalecem" a família. A lógica que apresenta essas duas políticas − investimento nas famílias e investimento no serviço de saúde pública − como mutuamente excludentes é obviamente absurda. Mas o pior é que muitas vezes a noção − de que a família é o principal responsável pela saúde de seus membros − vem antes de qualquer política efetiva de “fortalecimento” familiar. Desse jeito, o acento na família arrisca ficar como nada mais do que uma máxima moralista − um alibi que desculpa a falta de empenho político num programa realmente integral de saúde.
Nessa negociação entre Estado e família pobre, o trabalhador de saúde − especialmente os agentes de saúde familiar − fica na posição incômoda de mediador. É sensível à lógica de ambos mundos. Conhece as limitações do sistema de saúde, e procura conter a demanda para garantir a qualidade de atendimento. Por outro lado, reconhece as limitações e necessidades das famílias. Seu desafio é caminhar nessa corda bamba sem resvalar inteiramente para um lado ou outro: isto é, zelar pela qualidade do sistema, sem encampar a lógica estatal que vê as famílias como culpadas por não assumir total responsabilidade de seus membros, que as rotula de "heterônimas", criticando suas demandas "exageradas" de ajuda.
Por fim, gostaria de voltar para a idéia de modo de vida, enfatizando como esse conceito evoluiu na própria história da antropologia. Não devemos esquecer que a disciplina de Antropologia iniciou no contexto colonialista do século XIX. O modo de vida dos indígenas da África, Ásia e das Américas era visto por uma primeira geração de observadores colonialistas como, na melhor das hipóteses, um fenômeno de interesse folclórico. Na maioria das vezes, no entanto, o modo de vida desses "outros" era avaliado de forma puramente negativa. Visto em termos de falta, de ausência de tudo que os colonialistas consideravam civilizado, o modo de vida destes "outros" acabou sendo colocado como prova de primitivismo. Não é por acaso que o diálogo de então, entre colonialista e colonizado, era praticamente inexistente.
Uma nova fase de pensamento antropológico inicia quando os antropólogos, liderados por Malinowski no início do século XX, passam a fazer pesquisa etnográfica de campo -- isto é, aprendem a língua dos "nativos", sentam com eles e trocam idéias. Ao escutar as pessoas discorrerem sobre seu próprio modo de vida, de repente uma série de práticas e crenças que antes pareciam ilógicas -- tradições curiosas ou mera superstição -- passam a soar bastante razoáveis. É com a pesquisa de campo que inicia-se também a fase reflexiva da antropologia em que, ao tornar o "exótico familiar", o pesquisador acaba por tornar o "familiar exótico". Isto é, em vez de automaticamente assumir a superioridade de seu modo de vida, ele coloca em perspectiva as crenças e práticas de sua própria civilização.
Voltando agora para Brasil dos dias atuais, é interessante como boa parte da literatura crítica falando de desigualdade no país (Castell 2000, por exemplo), lamenta a pobreza das análises sobre grupos populares -- análises essas que ignoram qualquer positividade nas formas de sociabilidade destes grupos, que descrevem suas práticas e maneira de pensar o mundo em termos absolutamente negativos, ou seja, em termos de falta, de carência. A proposta aqui é, pelo contrário, pensar o modo de vida como fenômeno histórico, fruto de determinadas circunstâncias econômicas e políticas, e que dê prova da criatividade de indivíduos agindo em sociedade. Quero insistir que essa perspectiva, evidente nas propostas de pesquisadores tais como Elsen e Althoff (2004) e Dytz (2004) , não é um acréscimo à ciência já existente. Representa algo revolucionário, uma reviravolta no senso comum, superando abordagens neo-colonialistas e apontando o caminho para um espaço de verdadeiro diálogo nos programas de intervenção.

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